Gênero e Ciência
Vamos queimá-las de novo?
Renato Dagnino
Este artigo, escrito em tom caricatural por um cientista-homem, é sobre gênero e ciência. Seu título contém um dilema a ser enfrentado pelos homens que dominam o processo decisório da ciência contemporânea. Ou condenamos nossas colegas ao mesmo destino daquelas “bruxas” que há centenas de anos desafiaram a ciência oficial, e reforçamos os dogmas da neutralidade científica e do determinismo tecnológico, ou aprendemos com a sua transgressão e adotamos uma visão distinta acerca da Tecnociência. Nosso dilema é claro. Podemos manter esses dogmas e, coerentemente, reviver a idéia conspirativa de que elas ardilosamente querem nos desviar do “bom caminho” da ciência, e queimá-las. Ou podemos nos atrever a queimar as “sagradas escrituras” do positivismo e do cientificismo que hoje impedem a construção do substrato cognitivo do estilo de desenvolvimento alternativo que a maioria da Humanidade sensatamente reclama.
Como se sabe, aquelas mulheres foram queimadas por desenvolverem conhecimentos (conotados por palavrões como alquimia, astrologia etc) que violavam dois postulados basilares da ciência moderna (aquela que nasce com o capitalismo que sacramenta e naturaliza a separação do trabalho manual e intelectual).
O primeiro é que o desenvolvimento da ciência não deve estar submetido a nenhum constrangimento; isto é, que os campos e temas de pesquisa devem ser escolhidos pelos seus praticantes sem levar em conta interesses que não os determinados pela busca da verdade e pelo avanço do conhecimento. O segundo postulado é que o ambiente em que se produz a ciência verdadeira não deve ser contaminado por valores não-epistêmicos, interesses ou preconceitos de qualquer espécie.
A pesquisa sobre gênero e ciência ocupa hoje um lugar de destaque no âmbito dos chamados estudos sociais da ciência e tecnologia (e aproveito para sugerir a leitura da excelente coletânea recentemente publicada por três pesquisadoras do IAPAR). Por ajudarem a compreender aspectos da dinâmica da produção do conhecimento que vão muito além do que alguns consideram “coisas de mulheres”, seus resultados aparecem em revistas que pertencem ao mainstream da ciência e que estão bem classificadas no science citation index.
As pessoas que acompanham essa pesquisa concordariam que ela apresenta duas características.
A primeira, que viola o primeiro postulado, é que a imensa maioria dos trabalhos é escrita por mulheres. O que, evidentemente, viola o primeiro postulado. É inverossímil a hipótese de que as mulheres cientistas que escolhem o tema gênero e ciência o façam apenas “em busca da verdade” e do “avanço do conhecimento”. Elas realizam pesquisa científica sobre esse tema por um evidente (e louvável, diga-se de passagem) interesse não-epistêmico: mostrar que a mulher é capaz de produzir conhecimento que, no jargão inadequado mas facilmente inteligível da cienciometria, possui tanta “relevância” e “qualidade” quanto o produzido pelos seus colegas.
Na verdade, seus trabalhos, realizados em vários países e ambientes científicos, têm mostrado – sistemática e irrefutavelmente – que as mulheres, por serem mulheres, são preteridas na obtenção dos indispensáveis subsídios governamentais para sua capacitação e para a realização de pesquisa, e no acesso às posições mais elevadas da carreira nas universidades e instituições de pesquisa.
Essa segunda característica evidencia um desrespeito ao segundo postulado. Ela mostra que o pretensamente asséptico “mundo da ciência” se encontra “contaminado” com preconceitos de gênero.
O que faz emergir dois importantes balizamentos para a elaboração da política de ciência e tecnologia (C&T). O primeiro, é que muito provavelmente, apesar do que asseguram muitos cientistas, outros preconceitos, valores morais e interesses econômicos estejam também influenciando o desenvolvimento do conhecimento e promovendo a sua permanência e legitimação mediante mecanismos de realimentação intermediados pela tecnociência. E que seja essa influência (que caberia à política pública de C&T contrabalançar) uma das origens da crescente desagregação social, desigualdade econômica e deterioração ambiental que estamos presenciando.
O segundo, é que os partidários de um estilo de desenvolvimento alternativo parecem não ter mais remédio que “contaminar” os ambientes de pesquisa de onde deverá surgir o substrato cognitivo que ele demanda com os valores (cooperação e solidariedade versus controle e subordinação, degradação ambiental versus sustentabilidade, eqüidade versus competição etc) e interesses (das pequenas empresas e cooperativas versus o das transnacionais etc) que querem ver materializados.
E então? Vamos aproveitar o que nossas colegas estão descobrindo para reorientar a política científica e tecnológica e reprojetar a tecnociência, ou vamos queimá-las de novo?
Renato Dagnino é professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica, do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp.
Fonte: Jornal da Unicamp, Edição 341 - 23 a 29 de outubro de 2006.
Renato Dagnino
Este artigo, escrito em tom caricatural por um cientista-homem, é sobre gênero e ciência. Seu título contém um dilema a ser enfrentado pelos homens que dominam o processo decisório da ciência contemporânea. Ou condenamos nossas colegas ao mesmo destino daquelas “bruxas” que há centenas de anos desafiaram a ciência oficial, e reforçamos os dogmas da neutralidade científica e do determinismo tecnológico, ou aprendemos com a sua transgressão e adotamos uma visão distinta acerca da Tecnociência. Nosso dilema é claro. Podemos manter esses dogmas e, coerentemente, reviver a idéia conspirativa de que elas ardilosamente querem nos desviar do “bom caminho” da ciência, e queimá-las. Ou podemos nos atrever a queimar as “sagradas escrituras” do positivismo e do cientificismo que hoje impedem a construção do substrato cognitivo do estilo de desenvolvimento alternativo que a maioria da Humanidade sensatamente reclama.
Como se sabe, aquelas mulheres foram queimadas por desenvolverem conhecimentos (conotados por palavrões como alquimia, astrologia etc) que violavam dois postulados basilares da ciência moderna (aquela que nasce com o capitalismo que sacramenta e naturaliza a separação do trabalho manual e intelectual).
O primeiro é que o desenvolvimento da ciência não deve estar submetido a nenhum constrangimento; isto é, que os campos e temas de pesquisa devem ser escolhidos pelos seus praticantes sem levar em conta interesses que não os determinados pela busca da verdade e pelo avanço do conhecimento. O segundo postulado é que o ambiente em que se produz a ciência verdadeira não deve ser contaminado por valores não-epistêmicos, interesses ou preconceitos de qualquer espécie.
A pesquisa sobre gênero e ciência ocupa hoje um lugar de destaque no âmbito dos chamados estudos sociais da ciência e tecnologia (e aproveito para sugerir a leitura da excelente coletânea recentemente publicada por três pesquisadoras do IAPAR). Por ajudarem a compreender aspectos da dinâmica da produção do conhecimento que vão muito além do que alguns consideram “coisas de mulheres”, seus resultados aparecem em revistas que pertencem ao mainstream da ciência e que estão bem classificadas no science citation index.
As pessoas que acompanham essa pesquisa concordariam que ela apresenta duas características.
A primeira, que viola o primeiro postulado, é que a imensa maioria dos trabalhos é escrita por mulheres. O que, evidentemente, viola o primeiro postulado. É inverossímil a hipótese de que as mulheres cientistas que escolhem o tema gênero e ciência o façam apenas “em busca da verdade” e do “avanço do conhecimento”. Elas realizam pesquisa científica sobre esse tema por um evidente (e louvável, diga-se de passagem) interesse não-epistêmico: mostrar que a mulher é capaz de produzir conhecimento que, no jargão inadequado mas facilmente inteligível da cienciometria, possui tanta “relevância” e “qualidade” quanto o produzido pelos seus colegas.
Na verdade, seus trabalhos, realizados em vários países e ambientes científicos, têm mostrado – sistemática e irrefutavelmente – que as mulheres, por serem mulheres, são preteridas na obtenção dos indispensáveis subsídios governamentais para sua capacitação e para a realização de pesquisa, e no acesso às posições mais elevadas da carreira nas universidades e instituições de pesquisa.
Essa segunda característica evidencia um desrespeito ao segundo postulado. Ela mostra que o pretensamente asséptico “mundo da ciência” se encontra “contaminado” com preconceitos de gênero.
O que faz emergir dois importantes balizamentos para a elaboração da política de ciência e tecnologia (C&T). O primeiro, é que muito provavelmente, apesar do que asseguram muitos cientistas, outros preconceitos, valores morais e interesses econômicos estejam também influenciando o desenvolvimento do conhecimento e promovendo a sua permanência e legitimação mediante mecanismos de realimentação intermediados pela tecnociência. E que seja essa influência (que caberia à política pública de C&T contrabalançar) uma das origens da crescente desagregação social, desigualdade econômica e deterioração ambiental que estamos presenciando.
O segundo, é que os partidários de um estilo de desenvolvimento alternativo parecem não ter mais remédio que “contaminar” os ambientes de pesquisa de onde deverá surgir o substrato cognitivo que ele demanda com os valores (cooperação e solidariedade versus controle e subordinação, degradação ambiental versus sustentabilidade, eqüidade versus competição etc) e interesses (das pequenas empresas e cooperativas versus o das transnacionais etc) que querem ver materializados.
E então? Vamos aproveitar o que nossas colegas estão descobrindo para reorientar a política científica e tecnológica e reprojetar a tecnociência, ou vamos queimá-las de novo?
Renato Dagnino é professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica, do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp.
Fonte: Jornal da Unicamp, Edição 341 - 23 a 29 de outubro de 2006.
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