A divulgação científica contida nos filmes de ficção
A DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA CONTIDA NOS FILMES DE FICÇÃO
Alfredo Luiz Paes de Oliveira Suppia
Um alienígena e um robô saem de um disco voador, pousado no centro de Washington em O dia em que a Terra parou (1951), de Robert Wise; um ônibus espacial chega a uma estação orbital, ao som da valsa Danúbio Azul em 2001: uma odisséia no espaço (1968), de Stanley Kubrick; ou, ainda, cientistas ouvem a melodia emitida por imenso disco voador, suspenso a poucos metros de suas cabeças, na inesquecível cena de Contatos imediatos do terceiro grau (1977), de Steven Spielberg. É difícil avaliar quanto da noção de ciência e tecnologia que as pessoas têm não foi adquirido de filmes de ficção científica como estes, integrantes de um gênero que já abordou, de forma visionária, temas tão diversos quanto à astronáutica ou a clonagem.
Embora não exista um consenso entre os pesquisadores da área sobre o potencial educativo e de divulgação de ciência, ele existe e não é nada desprezível. Algumas obras já foram mencionadas como fonte de inspiração para cientistas. Em seu livro Fritz Lang: the nature of the beast (New York: St. Martin’s Press, 1997), Patrick McGilligan lembra que foi por causa de A mulher na Lua que, em 1968, nos EUA, o cineasta alemão foi convidado de honra de um Space-Science Seminar, realizado num centro governamental de pesquisa em Huntsville, Alabama.
CARACTERÍSTICAS DA FICÇÃO Da perspectiva da crítica cinematográfica, um filme de ficção científica não tem a necessidade de ficar restrito ao conhecimento científico corrente. Tanto melhor uma obra do gênero quanto mais inteligentes forem suas extrapolações ou especulações sobre ciência e tecnologia. Muito mais do que a validade das idéias científicas que expõe, interessa a filmes do gênero a construção de uma lógica interna. Na Poética, Aristóteles demonstrou que um silogismo pode advir de uma premissa falsa, sem que isso comprometa a estrutura do raciocínio lógico. É nesse terreno que opera a ficção científica.
Embora não tenha nenhum compromisso com a educação científica, mas sim com o livre debate imaginativo, é fato que em diversas ocasiões o gênero desperta no público o interesse pela ciência, chegando mesmo a estabelecer algum nível de alfabetização ou mesmo motivação para carreiras científicas.
Brian Stableford, autor de "Marriage of science and fiction" (Encyclopedia of science fiction. London: Octopus, 1978), assinala que o primeiro "manifesto" de uma literatura baseada em idéias científicas foi escrito pelo crítico e poeta britânico William Wilson, que defendia, em 1851, uma ficção que fosse veículo de popularização da ciência. Uma segunda tentativa nesse sentido foi feita em 1895 pelo romancista americano Edgar Fawcett, para quem "a ficção imaginativa deveria descobrir novas fontes e nova disciplina nos territórios abertos pela teoria científica". Ambas as propostas passaram despercebidas.
Hugo Gernsback, engenheiro e editor americano de origem luxemburguesa, criador da revista Amazing Stories em 1926 – e a quem se atribui a paternidade do termo "ficção científica"–, foi escritor tanto de ficção quanto de divulgação científica. Pioneiro do rádio e da televisão foi o primeiro a enunciar o princípio do radar, em 1911, e grande responsável pela divulgação da ficção científica nos EUA.
Na esteira de Gernsback estão Isaac Asimov e Arthur C. Clarke, escritores com formação científica. Clarke, formado em física e matemática, é autor, entre outras obras do gênero, do roteiro de 2001: uma odisséia no espaço (1968), juntamente com Stanley Kubrick. Escreveu competentes livros de não-ficção ou divulgação científica, como Perfil do futuro (Vozes), e ficou famoso por antever tecnologias como o satélite artificial e a rede de comunicações mundial. Asimov, doutor em bioquímica e professor da Universidade de Boston, foi autor não só de romances e contos de ficção – como a série Fundação ou Eu, robô – mas também de livros de divulgação científica como O código genético (Cultrix). Pela inventividade e qualidade literária, as obras ficcionais tanto de Clarke quanto de Asimov não só refletem a paixão de ambos pela ciência, como também incorporam a vocação didática desses autores.
FASCÍNIO DO ESPAÇO É possível identificar valor educativo em alguns filmes de ficção científica, a despeito das pressões comerciais que atuam nesse meio. Filmes como A mulher na Lua (1929), de Fritz Lang, Destination Moon (1950), de Irwin Pichell, e 2001, de Kubrick, apóiam-se em conteúdo científico corrente e reputado em suas respectivas épocas, ainda que inserido em contexto fantasioso.
Em A mulher na Lua, os especialistas em astronáutica Hermann Oberth e Willy Ley prestaram valiosa consultoria científica. O filme de Lang antecipa situações como o ambiente de gravidade zero, o procedimento da contagem regressiva e a idéia, cientificamente realista, de um foguete com estágios, similar aos usados na corrida espacial tempos depois. Outros detalhes, porém, especialmente nas seqüências que se passam na Lua, têm pouca ou nenhuma autenticidade científica – por exemplo, o fato de o satélite contar com uma atmosfera respirável. Mas nem por isso o filme deixa de propor uma interessante especulação sobre a exploração espacial. A mulher na Lua foi tão realista em determinados aspectos que o governo nazista proibiu sua exibição e confiscou o filme, temendo a divulgação de segredos científico-militares relativos às bombas V2.
CLONAGEM Meninos do Brasil, filme de 1978, dirigido por Franklin J. Schaffner, com base no livro de Ira Levin, trata de um projeto secreto, conduzido pelo médico nazista Josef Mengele, que tem por objetivo criar um clone de Adolf Hitler. A despeito das simplificações geográficas e históricas, o filme chama a atenção pelo didatismo científico. A certa altura, o diálogo entre um médico e um caçador de nazistas abre uma trincheira documentária no universo ficcional, sendo inteiramente dedicado à explicação, em linguagem acessível, da técnica da clonagem. O médico ilustra seu discurso projetando para seu interlocutor (e, por extensão, para nós, os espectadores) um filme científico, com imagens documentárias de procedimentos ligados à clonagem. Essa e outras cenas do filme chamam a atenção para a influência do ambiente na formação de um suposto clone, deixando claro que não basta clonar Hitler para que se ressuscite o Führer. Seria necessário, além disso, recriar o ambiente que forjou as idéias e o comportamento do líder nazista, de maneira que várias crianças clones de Hitler, em diferentes pontos do planeta, estariam servindo à experiência. Com muita sorte, apenas uma viria a se tornar novamente o verdadeiro Führer.
Outro filme que levanta questões interessantes sobre a clonagem é Parque dos dinossauros (1993), dirigido por Steven Spielberg com base no romance de Michael Crichton. O filme é sobre um parque temático que abriga dinossauros recriados a partir de material genético contido no corpo de uma mosca preservada em âmbar. O salto científico dessa ficção é considerável e, por isso mesmo, levanta a questão ética por trás da clonagem de maneira instigante e divertida. Parque dos dinossauros veio na "crista da onda" de uma tendência que tomou conta da mídia nos anos 1990: o crescente interesse pelos progressos na biologia molecular e na engenharia genética, ainda que de maneira um pouco confusa.
Gattaca, filme de 1997 escrito e dirigido por Andrew Niccol, retoma a clonagem humana, apostando no livre-arbítrio e no acaso como fatores de resistência a um futuro dominado pela genética. De forma similar ao livro Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley, Gattaca descreve uma sociedade do futuro próximo na qual os bebês nascem em clínicas de aprimoramento genético. Esses indivíduos são denominados "Valid" e destinados a carreiras de elite. Em contrapartida, indivíduos nascidos naturalmente e, portanto, sujeitos ao acaso genético – os "In-Valid" – são destinados a funções subalternas. Nesse contexto, um "In-Valid" assume a identidade de um "Valid" e destaca-se por sua competência. A maioria das tecnologias apresentadas em Gattaca nos é familiar, mas a força do filme vem de sua especulação sociológica, aliada a apropriações muito sensatas do conhecimento genético corrente.
O Brasil contribuiu para o cinema de ficção científica com especulações ambientais alarmantes. Filmes como Parada 88: o limite de alerta (1978), de José de Anchieta, ou Abrigo nuclear (1981), de Roberto Pires, trataram da problemática da energia nuclear antes do acidente de Chernobyl.
TROCAS CRIATIVAS Em seu livro The cybernetic imagination of science fiction film (Cambridge: The MIT Press, 1980), Patrícia Warwick diz que "invenção e imaginação interagem, cada uma refletindo as novas possibilidades da outra". A autora observa que Isaac Asimov escreveu sua primeira história de robôs, Robbie, sob a influência da visita a um robô em exposição na Feira Mundial de Nova York, em 1939. Em contrapartida, Joseph Engelberger, o construtor do primeiro robô industrial, o Unimate (1958), confessa a influência que teve da obra I, robot, de Asimov, quando ainda era adolescente. Hoje, a indústria robótica japonesa não nega sua afinidade com o universo ficcional de Asimov, criador das Três Leis da Robótica. O que ratifica a convicção de alguns pesquisadores sobre o potencial divulgador, inspirador e mesmo instigador da ficção científica, seja no cinema ou na literatura.
Cienc. Cult. vol.58 no. 1 São Paulo Jan./Mar. 2006.
Alfredo Luiz Paes de Oliveira Suppia
Um alienígena e um robô saem de um disco voador, pousado no centro de Washington em O dia em que a Terra parou (1951), de Robert Wise; um ônibus espacial chega a uma estação orbital, ao som da valsa Danúbio Azul em 2001: uma odisséia no espaço (1968), de Stanley Kubrick; ou, ainda, cientistas ouvem a melodia emitida por imenso disco voador, suspenso a poucos metros de suas cabeças, na inesquecível cena de Contatos imediatos do terceiro grau (1977), de Steven Spielberg. É difícil avaliar quanto da noção de ciência e tecnologia que as pessoas têm não foi adquirido de filmes de ficção científica como estes, integrantes de um gênero que já abordou, de forma visionária, temas tão diversos quanto à astronáutica ou a clonagem.
Embora não exista um consenso entre os pesquisadores da área sobre o potencial educativo e de divulgação de ciência, ele existe e não é nada desprezível. Algumas obras já foram mencionadas como fonte de inspiração para cientistas. Em seu livro Fritz Lang: the nature of the beast (New York: St. Martin’s Press, 1997), Patrick McGilligan lembra que foi por causa de A mulher na Lua que, em 1968, nos EUA, o cineasta alemão foi convidado de honra de um Space-Science Seminar, realizado num centro governamental de pesquisa em Huntsville, Alabama.
CARACTERÍSTICAS DA FICÇÃO Da perspectiva da crítica cinematográfica, um filme de ficção científica não tem a necessidade de ficar restrito ao conhecimento científico corrente. Tanto melhor uma obra do gênero quanto mais inteligentes forem suas extrapolações ou especulações sobre ciência e tecnologia. Muito mais do que a validade das idéias científicas que expõe, interessa a filmes do gênero a construção de uma lógica interna. Na Poética, Aristóteles demonstrou que um silogismo pode advir de uma premissa falsa, sem que isso comprometa a estrutura do raciocínio lógico. É nesse terreno que opera a ficção científica.
Embora não tenha nenhum compromisso com a educação científica, mas sim com o livre debate imaginativo, é fato que em diversas ocasiões o gênero desperta no público o interesse pela ciência, chegando mesmo a estabelecer algum nível de alfabetização ou mesmo motivação para carreiras científicas.
Brian Stableford, autor de "Marriage of science and fiction" (Encyclopedia of science fiction. London: Octopus, 1978), assinala que o primeiro "manifesto" de uma literatura baseada em idéias científicas foi escrito pelo crítico e poeta britânico William Wilson, que defendia, em 1851, uma ficção que fosse veículo de popularização da ciência. Uma segunda tentativa nesse sentido foi feita em 1895 pelo romancista americano Edgar Fawcett, para quem "a ficção imaginativa deveria descobrir novas fontes e nova disciplina nos territórios abertos pela teoria científica". Ambas as propostas passaram despercebidas.
Hugo Gernsback, engenheiro e editor americano de origem luxemburguesa, criador da revista Amazing Stories em 1926 – e a quem se atribui a paternidade do termo "ficção científica"–, foi escritor tanto de ficção quanto de divulgação científica. Pioneiro do rádio e da televisão foi o primeiro a enunciar o princípio do radar, em 1911, e grande responsável pela divulgação da ficção científica nos EUA.
Na esteira de Gernsback estão Isaac Asimov e Arthur C. Clarke, escritores com formação científica. Clarke, formado em física e matemática, é autor, entre outras obras do gênero, do roteiro de 2001: uma odisséia no espaço (1968), juntamente com Stanley Kubrick. Escreveu competentes livros de não-ficção ou divulgação científica, como Perfil do futuro (Vozes), e ficou famoso por antever tecnologias como o satélite artificial e a rede de comunicações mundial. Asimov, doutor em bioquímica e professor da Universidade de Boston, foi autor não só de romances e contos de ficção – como a série Fundação ou Eu, robô – mas também de livros de divulgação científica como O código genético (Cultrix). Pela inventividade e qualidade literária, as obras ficcionais tanto de Clarke quanto de Asimov não só refletem a paixão de ambos pela ciência, como também incorporam a vocação didática desses autores.
FASCÍNIO DO ESPAÇO É possível identificar valor educativo em alguns filmes de ficção científica, a despeito das pressões comerciais que atuam nesse meio. Filmes como A mulher na Lua (1929), de Fritz Lang, Destination Moon (1950), de Irwin Pichell, e 2001, de Kubrick, apóiam-se em conteúdo científico corrente e reputado em suas respectivas épocas, ainda que inserido em contexto fantasioso.
Em A mulher na Lua, os especialistas em astronáutica Hermann Oberth e Willy Ley prestaram valiosa consultoria científica. O filme de Lang antecipa situações como o ambiente de gravidade zero, o procedimento da contagem regressiva e a idéia, cientificamente realista, de um foguete com estágios, similar aos usados na corrida espacial tempos depois. Outros detalhes, porém, especialmente nas seqüências que se passam na Lua, têm pouca ou nenhuma autenticidade científica – por exemplo, o fato de o satélite contar com uma atmosfera respirável. Mas nem por isso o filme deixa de propor uma interessante especulação sobre a exploração espacial. A mulher na Lua foi tão realista em determinados aspectos que o governo nazista proibiu sua exibição e confiscou o filme, temendo a divulgação de segredos científico-militares relativos às bombas V2.
CLONAGEM Meninos do Brasil, filme de 1978, dirigido por Franklin J. Schaffner, com base no livro de Ira Levin, trata de um projeto secreto, conduzido pelo médico nazista Josef Mengele, que tem por objetivo criar um clone de Adolf Hitler. A despeito das simplificações geográficas e históricas, o filme chama a atenção pelo didatismo científico. A certa altura, o diálogo entre um médico e um caçador de nazistas abre uma trincheira documentária no universo ficcional, sendo inteiramente dedicado à explicação, em linguagem acessível, da técnica da clonagem. O médico ilustra seu discurso projetando para seu interlocutor (e, por extensão, para nós, os espectadores) um filme científico, com imagens documentárias de procedimentos ligados à clonagem. Essa e outras cenas do filme chamam a atenção para a influência do ambiente na formação de um suposto clone, deixando claro que não basta clonar Hitler para que se ressuscite o Führer. Seria necessário, além disso, recriar o ambiente que forjou as idéias e o comportamento do líder nazista, de maneira que várias crianças clones de Hitler, em diferentes pontos do planeta, estariam servindo à experiência. Com muita sorte, apenas uma viria a se tornar novamente o verdadeiro Führer.
Outro filme que levanta questões interessantes sobre a clonagem é Parque dos dinossauros (1993), dirigido por Steven Spielberg com base no romance de Michael Crichton. O filme é sobre um parque temático que abriga dinossauros recriados a partir de material genético contido no corpo de uma mosca preservada em âmbar. O salto científico dessa ficção é considerável e, por isso mesmo, levanta a questão ética por trás da clonagem de maneira instigante e divertida. Parque dos dinossauros veio na "crista da onda" de uma tendência que tomou conta da mídia nos anos 1990: o crescente interesse pelos progressos na biologia molecular e na engenharia genética, ainda que de maneira um pouco confusa.
Gattaca, filme de 1997 escrito e dirigido por Andrew Niccol, retoma a clonagem humana, apostando no livre-arbítrio e no acaso como fatores de resistência a um futuro dominado pela genética. De forma similar ao livro Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley, Gattaca descreve uma sociedade do futuro próximo na qual os bebês nascem em clínicas de aprimoramento genético. Esses indivíduos são denominados "Valid" e destinados a carreiras de elite. Em contrapartida, indivíduos nascidos naturalmente e, portanto, sujeitos ao acaso genético – os "In-Valid" – são destinados a funções subalternas. Nesse contexto, um "In-Valid" assume a identidade de um "Valid" e destaca-se por sua competência. A maioria das tecnologias apresentadas em Gattaca nos é familiar, mas a força do filme vem de sua especulação sociológica, aliada a apropriações muito sensatas do conhecimento genético corrente.
O Brasil contribuiu para o cinema de ficção científica com especulações ambientais alarmantes. Filmes como Parada 88: o limite de alerta (1978), de José de Anchieta, ou Abrigo nuclear (1981), de Roberto Pires, trataram da problemática da energia nuclear antes do acidente de Chernobyl.
TROCAS CRIATIVAS Em seu livro The cybernetic imagination of science fiction film (Cambridge: The MIT Press, 1980), Patrícia Warwick diz que "invenção e imaginação interagem, cada uma refletindo as novas possibilidades da outra". A autora observa que Isaac Asimov escreveu sua primeira história de robôs, Robbie, sob a influência da visita a um robô em exposição na Feira Mundial de Nova York, em 1939. Em contrapartida, Joseph Engelberger, o construtor do primeiro robô industrial, o Unimate (1958), confessa a influência que teve da obra I, robot, de Asimov, quando ainda era adolescente. Hoje, a indústria robótica japonesa não nega sua afinidade com o universo ficcional de Asimov, criador das Três Leis da Robótica. O que ratifica a convicção de alguns pesquisadores sobre o potencial divulgador, inspirador e mesmo instigador da ficção científica, seja no cinema ou na literatura.
Cienc. Cult. vol.58 no. 1 São Paulo Jan./Mar. 2006.
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