A divulgação científica como instrumento de cidadania
A divulgação científica como instrumento de cidadania
Por: Ramayna Gazzinelli
Neste ano em que comemoramos o centenário da Teoria da Relatividade, recordei-me de uma história que me foi contada na escola primária, segundo a qual apenas uma meia dúzia de pessoas em todo o mundo, além do próprio Einstein, compreendia a teoria. Essa lenda, bastante difundida como vim a descobrir depois, dá uma idéia da distância em que o homem comum vê a ciência. Nem sempre foi assim. Até a revolução científica dos séculos XVII e XVIII, que deu início ao desenvolvimento rápido das ciências, livros de diversos ramos do saber eram facilmente compreendidos por pessoas cultas. Galileu, um dos fundadores da física moderna, escreveu suas principais obras em italiano, em vez do latim usual, para que pudessem ser compreendidas por todos.
A palavra scientist só foi criada no início do século XIX, o que indica que o processo de especialização das ciências, iniciado com a revolução científica, ganhava rapidez, mas elas continuavam acessíveis ao homem comum. Humphry Davy e Michael Faraday, na primeira metade desse século, faziam demonstrações populares sobre suas descobertas mais recentes em química e eletromagnetismo, com grande afluência de público. Charles Darwin escreveu sua obra mais importante, A origem das espécies, de forma que pudesse ser lida pelo leitor não-especializado. Não se pode negar o êxito editorial dessa obra tão minuciosa e revolucionária – a primeira edição se esgotou no dia da publicação, 24 de novembro de 1859 e, já em janeiro do ano seguinte, vinha a lume a segunda edição. Mesmo relatos experimentais, publicados em periódicos especializados – como o artigo fundamental da genética de Gregor Mendel –, eram compreensíveis para o leitor não-especializado.
O processo de especialização das ciências completou-se no século XX. As comunicações científicas são, agora, escritas tendo-se em vista os especialistas de um pequeno canto do saber. Até pesquisadores de uma mesma ciência, mas de diferentes especialidades, são afetados pela dificuldade de comunicação, porque são diversos os instrumentos, as técnicas de medidas, os métodos matemáticos de análise e os conceitos usados. A ligação dos conhecimentos em cadeia, o maior grau de abstração e a linguagem hermética da ciência moderna criam barreiras intransponíveis para o homem comum, o que acaba constituindo uma ameaça à própria ciência, por tornar impossível o exame de suas aplicações pela sociedade que a mantém.
Vivemos imersos num ambiente científico. Os aparelhos que nos cercam e, talvez, nos dominam na vida diária – televisão, computador, telefone celular, radar, aparelhos de diagnóstico médico – não são invenções técnicas, mas invenções de base científica, isto é, que não existiriam sem a ciência moderna. A todo momento, tomamos decisões políticas, que, muitas vezes, envolvem conhecimento científico, ao optar pelo programa de um partido, opinar em referendos ou, simplesmente, subscrever manifestos. Em nosso país, existem, atualmente, algumas questões graves sobre as quais não se pode opinar sem reflexão cuidadosa, fundada num conhecimento científico mínimo – a instalação de usinas nucleares, a produção de grãos transgênicos, o uso de células embrionárias e a clonagem de seres humanos, entre outras. Essas questões complexas podem ser analisadas de diferentes perspectivas e podem ter respostas variadas de diferentes peritos. Por isso, elas exigem que o cidadão tenha algum conhecimento científico para que não seja manipulado por especialistas, que, com freqüência, torcem os fatos científicos para satisfazer suas ideologias, ou por demagogos, que as manipulam de maneira puramente emocional. O acesso à informação científica séria permite ao cidadão participar racionalmente do debate com a informação necessária e sem preconceitos.
Não se trata, porém, de apenas instrumentalizar o cidadão para o debate na sociedade democrática, mas, principalmente, de inseri-lo na cultura de nossos tempos. A ciência representa para nossa civilização o que a teologia foi para a da Europa medieval ou a filosofia para a dos gregos. Apesar da aparente oposição entre cultura e ciência – o que C. P. Snow chamou, num ensaio clássico, de “as duas culturas”– e que transparece, por exemplo, na existência, em nosso país, de ministérios distintos de ciência e de cultura, a ciência é parte essencial de nossa cultura e, como tal, deve ser tratada. A divulgação científica pode desempenhar essa tarefa de inclusão do cidadão na cultura de nosso tempo.
Um dos exemplos mais notáveis de divulgação científica foi o livro Silent Spring, de Rachel Carson, publicado em 1962, a respeito do uso indiscriminado do pesticida DDT. Esse livro levou à proibição do DDT, mas, principalmente, desencadeou o moderno movimento ambientalista em todo o mundo. Rachel Carson era uma cientista e seu livro, ancorado em referências científicas de qualidade e escrito com sensibilidade, destinado ao leitor comum. Deve-se a isso sua notável influência na população norte-americana, que, por sua vez, pressionou o governo Kennedy a agir. Passados pouco mais de 40 anos desses fatos, ao observar a imensa força do movimento ambientalista hoje, é difícil imaginar a que grau o mundo era, nessa época, insensível à destruição do ambiente. Porém, mesmo com esse progresso, a questão ambiental continua a ser um dos mais importantes alvos da divulgação científica, porque o homem continua a agredir a natureza e, nas palavras da própria Carson, “o homem é uma parte da natureza e sua luta contra a natureza é inevitavelmente uma luta contra si mesmo”.
O exemplo de Carson mostra que a divulgação científica não é uma tarefa desprezível e pode gerar resultados apreciáveis para a sociedade. O próprio cientista tem um ganho, porque, ao criar imagens para explicar conceitos novos para o leitor não-especializado, sua própria compreensão deles aumenta.
A popularização da ciência pode ser feita por cientistas, jornalistas científicos ou escritores. No primeiro caso, a principal dificuldade está em conseguir o cientista libertar-se de sua linguagem, que é, de certa maneira, cifrada para o leitor; no segundo, em captar o jornalista os conceitos corretamente; no terceiro, em não falsear o escritor a ciência para satisfazer a ficção. Em todo o caso, é importante comunicar ao leitor a idéia de que a ciência é um processo e não, uma enciclopédia; de que a ciência está sempre em formação – uma teoria, aceita, hoje, como verdade científica, poderá não resistir aos testes experimentais e será abandonada amanhã; de que a ciência deve ser vista com olhos céticos – nem toda descoberta anunciada por um cientista ou laboratório deve ser aceita como verdade estabelecida; de que a “verdade” científica é o resultado da concordância do trabalho de muitos cientistas de laboratórios independentes, durante muitos anos; e, por fim, de que, muitas vezes, descobertas extraordinárias, apresentadas como “verdades científicas”, são, de fato, modelos de trabalho usados pelos cientistas para desenvolverem suas teorias.
Por: Ramayna Gazzinelli
Neste ano em que comemoramos o centenário da Teoria da Relatividade, recordei-me de uma história que me foi contada na escola primária, segundo a qual apenas uma meia dúzia de pessoas em todo o mundo, além do próprio Einstein, compreendia a teoria. Essa lenda, bastante difundida como vim a descobrir depois, dá uma idéia da distância em que o homem comum vê a ciência. Nem sempre foi assim. Até a revolução científica dos séculos XVII e XVIII, que deu início ao desenvolvimento rápido das ciências, livros de diversos ramos do saber eram facilmente compreendidos por pessoas cultas. Galileu, um dos fundadores da física moderna, escreveu suas principais obras em italiano, em vez do latim usual, para que pudessem ser compreendidas por todos.
A palavra scientist só foi criada no início do século XIX, o que indica que o processo de especialização das ciências, iniciado com a revolução científica, ganhava rapidez, mas elas continuavam acessíveis ao homem comum. Humphry Davy e Michael Faraday, na primeira metade desse século, faziam demonstrações populares sobre suas descobertas mais recentes em química e eletromagnetismo, com grande afluência de público. Charles Darwin escreveu sua obra mais importante, A origem das espécies, de forma que pudesse ser lida pelo leitor não-especializado. Não se pode negar o êxito editorial dessa obra tão minuciosa e revolucionária – a primeira edição se esgotou no dia da publicação, 24 de novembro de 1859 e, já em janeiro do ano seguinte, vinha a lume a segunda edição. Mesmo relatos experimentais, publicados em periódicos especializados – como o artigo fundamental da genética de Gregor Mendel –, eram compreensíveis para o leitor não-especializado.
O processo de especialização das ciências completou-se no século XX. As comunicações científicas são, agora, escritas tendo-se em vista os especialistas de um pequeno canto do saber. Até pesquisadores de uma mesma ciência, mas de diferentes especialidades, são afetados pela dificuldade de comunicação, porque são diversos os instrumentos, as técnicas de medidas, os métodos matemáticos de análise e os conceitos usados. A ligação dos conhecimentos em cadeia, o maior grau de abstração e a linguagem hermética da ciência moderna criam barreiras intransponíveis para o homem comum, o que acaba constituindo uma ameaça à própria ciência, por tornar impossível o exame de suas aplicações pela sociedade que a mantém.
Vivemos imersos num ambiente científico. Os aparelhos que nos cercam e, talvez, nos dominam na vida diária – televisão, computador, telefone celular, radar, aparelhos de diagnóstico médico – não são invenções técnicas, mas invenções de base científica, isto é, que não existiriam sem a ciência moderna. A todo momento, tomamos decisões políticas, que, muitas vezes, envolvem conhecimento científico, ao optar pelo programa de um partido, opinar em referendos ou, simplesmente, subscrever manifestos. Em nosso país, existem, atualmente, algumas questões graves sobre as quais não se pode opinar sem reflexão cuidadosa, fundada num conhecimento científico mínimo – a instalação de usinas nucleares, a produção de grãos transgênicos, o uso de células embrionárias e a clonagem de seres humanos, entre outras. Essas questões complexas podem ser analisadas de diferentes perspectivas e podem ter respostas variadas de diferentes peritos. Por isso, elas exigem que o cidadão tenha algum conhecimento científico para que não seja manipulado por especialistas, que, com freqüência, torcem os fatos científicos para satisfazer suas ideologias, ou por demagogos, que as manipulam de maneira puramente emocional. O acesso à informação científica séria permite ao cidadão participar racionalmente do debate com a informação necessária e sem preconceitos.
Não se trata, porém, de apenas instrumentalizar o cidadão para o debate na sociedade democrática, mas, principalmente, de inseri-lo na cultura de nossos tempos. A ciência representa para nossa civilização o que a teologia foi para a da Europa medieval ou a filosofia para a dos gregos. Apesar da aparente oposição entre cultura e ciência – o que C. P. Snow chamou, num ensaio clássico, de “as duas culturas”– e que transparece, por exemplo, na existência, em nosso país, de ministérios distintos de ciência e de cultura, a ciência é parte essencial de nossa cultura e, como tal, deve ser tratada. A divulgação científica pode desempenhar essa tarefa de inclusão do cidadão na cultura de nosso tempo.
Um dos exemplos mais notáveis de divulgação científica foi o livro Silent Spring, de Rachel Carson, publicado em 1962, a respeito do uso indiscriminado do pesticida DDT. Esse livro levou à proibição do DDT, mas, principalmente, desencadeou o moderno movimento ambientalista em todo o mundo. Rachel Carson era uma cientista e seu livro, ancorado em referências científicas de qualidade e escrito com sensibilidade, destinado ao leitor comum. Deve-se a isso sua notável influência na população norte-americana, que, por sua vez, pressionou o governo Kennedy a agir. Passados pouco mais de 40 anos desses fatos, ao observar a imensa força do movimento ambientalista hoje, é difícil imaginar a que grau o mundo era, nessa época, insensível à destruição do ambiente. Porém, mesmo com esse progresso, a questão ambiental continua a ser um dos mais importantes alvos da divulgação científica, porque o homem continua a agredir a natureza e, nas palavras da própria Carson, “o homem é uma parte da natureza e sua luta contra a natureza é inevitavelmente uma luta contra si mesmo”.
O exemplo de Carson mostra que a divulgação científica não é uma tarefa desprezível e pode gerar resultados apreciáveis para a sociedade. O próprio cientista tem um ganho, porque, ao criar imagens para explicar conceitos novos para o leitor não-especializado, sua própria compreensão deles aumenta.
A popularização da ciência pode ser feita por cientistas, jornalistas científicos ou escritores. No primeiro caso, a principal dificuldade está em conseguir o cientista libertar-se de sua linguagem, que é, de certa maneira, cifrada para o leitor; no segundo, em captar o jornalista os conceitos corretamente; no terceiro, em não falsear o escritor a ciência para satisfazer a ficção. Em todo o caso, é importante comunicar ao leitor a idéia de que a ciência é um processo e não, uma enciclopédia; de que a ciência está sempre em formação – uma teoria, aceita, hoje, como verdade científica, poderá não resistir aos testes experimentais e será abandonada amanhã; de que a ciência deve ser vista com olhos céticos – nem toda descoberta anunciada por um cientista ou laboratório deve ser aceita como verdade estabelecida; de que a “verdade” científica é o resultado da concordância do trabalho de muitos cientistas de laboratórios independentes, durante muitos anos; e, por fim, de que, muitas vezes, descobertas extraordinárias, apresentadas como “verdades científicas”, são, de fato, modelos de trabalho usados pelos cientistas para desenvolverem suas teorias.
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