27 dezembro 2006

Ética na Política (de Ciência e Tecnologia)

Artigo de Joelmo Oliveira

Um chamamento para que, com o espírito de crítica construtiva, iniciemos um debate sistemático que possa levar a um processo de reconstrução de nossa política de C&T pautado pela ética, pela igualdade de oportunidades e pela maior aderência da pesquisa que fazemos aos anseios da população

Joelmo Oliveira, físico do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron/MCT e diretor de Política de C&T do Sindicato dos Trabalhadores em C&T do Estado de SP (SINTPQ). Artigo enviado pelo autor:

A Sociedade Brasileira de Física (SBF) é uma das mais importantes sociedades científicas em atividade no Brasil.

Muitos de seus sócios ocupam lugar de destaque nas diversas esferas de condução de políticas públicas de C&T.

A composição atual, e histórica, do Ministério da C&T e de agências de fomento como o CNPq revela o papel de destaque dos sócios da SBF na liderança política do setor de Pesquisa e Desenvolvimento no Brasil.

O debate acerca da “Ética no trabalho em C&T” ocupou bastante espaço na pauta de discussões da SBF neste ano, confirmando a tendência de crescimento do interesse pelo tema, que já vinha ocorrendo em período recente.

Esse debate chega num momento bastante oportuno, uma vez que o tema da Reforma Política pautada consensualmente pelos diversos atores da política nacional traz em sua agenda a discussão sobre a Ética na Política.

Por essa razão, o debate acerca da Ética na Política de C&T ganha extrema pertinência, e se inscreve no elenco de demandas políticas da sociedade em geral.

A expectativa de muitos cientistas brasileiros é que ele possa conduzir uma ampla reforma na Política de C&T até aqui conduzida.

Este texto destaca alguns pronunciamentos de membros da comunidade científica ligada à SBF em tempos recentes, podendo servir como um indicador das demandas políticas apontadas pela comunidade científica brasileira.

Em agosto passado, a professora Renata Zukanovich, do Instituto de Física da USP, assinou o boletim 11/2006 da SBF. O alvo da professora foi o edital 12/2006 do Ministério da C&T em conjunto com o CNPq.

Este edital foi destinado ao “apoio a projetos de difusão e popularização da ciência e tecnologia”, com recursos distribuídos que totalizaram o montante de oito milhões de reais.

A professora Zukanovich contesta severamente o processo de julgamento dos projetos. Ela questiona que “além de não listar nem o título dos projetos contemplados, muito menos seu conteúdo, equipe e valor concedido, ainda por cima, deixa transparecer possível falta de isenção no julgamento”.

A falta de isenção no julgamento dos projetos, na opinião da professora, deve-se ao fato (que parece ser recorrente) de que um dos membros do comitê julgador era autor de um dos projetos contemplados.

Fatos dessa natureza são bem conhecidos pela comunidade brasileira que trabalha em C&T, mas somente agora alguns de seus membros passaram a questionar tanto os processos de julgamento de projetos quanto os critérios de avaliação de projetos e de pesquisadores.

O debate corajosamente levantado pela professora Renata Zukanovich foi seguido de manifestações de outros membros da SBF, a exemplo dos professores Nelson Studart (UFSCar) e Paulo Nussenzveig (USP).

Mesmo antes do boletim 11/2006, outros boletins da SBF já colocavam na agenda a questão da ética.

Exemplos disso são os boletins 13/2004, 15/2004 e 02/2005, assinados por Sérgio D. Campos, nos quais o autor questiona a lisura dos concursos públicos para professor da USP.

Trata também de forma corajosa uma questão que há muito está colocada que é a dos “arranjos”, comuns em todo o país, nos concursos para professores de instituições públicas de ensino superior.

Campos nos dá nota de que “os 3 candidatos aprovados neste último concurso tinham colaboração com a banca examinadora. Isto não deveria acontecer sob nenhuma hipótese, penso eu. Não ponho em dúvida o mérito dos candidatos ou da banca, mas acredito que em um concurso público a banca examinadora não pode ter colaboração com nenhum dos candidatos sob risco de colocar a idoneidade do processo em dúvida não importando se as regras que regem este ou aquele concurso foram respeitadas”.

Com o mesmo mote, o boletim 08/2006 da SBF assinado por Ana Pelinson, Antônio Guimarães, Diego Gonçalves e Luiz Vitor de Souza Filho, todos do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, questiona os critérios adotados na ocasião do primeiro concurso para professores da Universidade Federal do ABC.

Afora o debate sobre a questão ética no meio científico-acadêmico, existem também profundos questionamentos de natureza política.

Eles dizem respeito aos critérios utilizados pelas agências de fomento no momento de avaliar o trabalho desenvolvido pelo pesquisador.

Nesta linha, ganham destaque as intervenções recentes dos professores Osvaldo Schilling do Depto. de Física da Universidade Federal de Santa Catarina, e Paulo Murilo Castro de Oliveira, da Universidade Federal Fluminense.

Paulo Murilo, em novembro passado, questionou no boletim 14/2006 da SBF o critério do número de artigos publicados como qualificador da atividade do pesquisador, ressaltando os vários caminhos pelos quais este indicador de qualidade da produção científica vem sendo fraudado.

Além disso, chama a atenção para o fato de que este critério tende a emular um perfil de pesquisador que não se inclina para o oferecimento de soluções tecnológicas para os diversos e concretos problemas nacionais.

Em maio, o boletim 06/2006 da SBF, de autoria do professor Osvaldo Schilling causou intenso alvoroço quando chamou a atenção para a forma como muitos ditos “grandes cientistas” fazem sua carreira no Brasil.

Em seu texto (que pela sua relevância citamos repetidamente a seguir), o professor Schilling utilizou-se de um personagem fictício para descrever como muitos “cientistas” brasileiros constituem sua carreira e adquirem poder político em conseqüência disso.

Schilling inicia seu texto intitulado “A nudez dos reis e a ‘Ciência’ no Brasil” com uma nota que segue transcrita:

“O autor vem declarar que qualquer semelhança biográfica entre o personagem Sicrano de Tal descrito nesse artigo publicado no Boletim nº 006/2006 e pessoas vivas ou mortas é mera coincidência. O autor mantém, entretanto, que os métodos de avaliação de desempenho acadêmico utilizados por órgãos de fomento oficiais no Brasil certamente incentivam que pessoas de poucos escrúpulos e competência duvidosa se utilizem das falhas deste sistema para se promoverem na carreira acadêmica”.

Em seguida justifica sua preocupação da seguinte forma:

“Tendo passado mais de metade da vida envolvido com tecnologia, ciência, educação, alguém como eu tem direito a ter fé no poder dessas três coisas em mudar a realidade ao nosso redor. É impossível, entretanto, não ficar desencantado pelo rumo que a administração da ciência no Brasil teima em manter há décadas, o que certamente só levará, no mínimo, à permanência da estagnação e dependência que temos hoje. Em particular, a maneira como as lideranças científicas são escolhidas só dá razão a esse desencanto.”

Rememorando a sua motivação, que é a de muitos de nós, para abraçar a carreira de pesquisador, escreve:

“Quando decidi entrar no meio acadêmico, há muitos anos, eu possuía uma idéia utópica desse meio. Nesse meio “ideal”, imperaria o mérito individual baseado em desempenho acadêmico. Mesmo estando no Brasil, este ambiente utópico seria impermeável ao compadrio, aos favorecimentos baseados em religião, cor política, etc., etc.”

Na seqüência da descrição da “vida acadêmica” do seu personagem “Sicrano de Tal” ele diz:

“Há alguns anos Sicrano tirou ‘a sorte grande’. Por trabalhar numa Universidade grande, com boa infra-estrutura, acabou ganhando, caído do céu, um equipamento valiosíssimo, que chamarei simplesmente ‘kedesaine’. A vida de Sicrano mudou! Para vocês terem uma idéia, ter hoje em dia um kedesaine é equivalente, talvez, a ser um Kaka no futebol: todas as pessoas te assediam! Como administrador do kedesaine, mesmo sem saber Física, Sicrano passou a contar com muitos colaboradores, no mundo inteiro.”

E finaliza:

“Hoje, Sicrano canta de galo, e diz o que a Física deve ser (...). Sicrano e outros como ele atingem a liderança da Pesquisa no Brasil na base do ´making and breaking´ e usando o trabalho de outros. É óbvio que tipo de ciência teremos. Na mesma Universidade de Sicrano há cientistas melhores, produtivos, a quem Sicrano dificulta o acesso ao precioso kedesaine. Ele é o rei, ele manda. Triste sina”.

É muito provável que as demandas de natureza política explicitadas pelos sócios da SBF reflitam um sentimento generalizado da comunidade científica nacional.

É preciso dar publicidade a estas demandas e percepções, fazê-las chegar aos ouvidos de quem deseja e planeja, para o Brasil, um desenvolvimento econômico sustentável que atenda aos requisitos de soberania nacional e inclusão social, pois parte importante desses objetivos depende de um correto ajuste nas políticas de desenvolvimento científico e tecnológico conduzidas no país.

Fica aqui o chamamento para que, com o espírito de crítica construtiva, iniciemos um debate sistemático que possa levar a um processo de reconstrução de nossa política de C&T pautado pela ética, pela igualdade de oportunidades e pela maior aderência da pesquisa que fazemos aos anseios da população.

Fonte: JC e-mail 3169, de 22 de Dezembro de 2006.

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