10 novembro 2008

Questão de qualidade

Por Fábio de Castro

Agência FAPESP – O número de publicações e doutorados na América Latina tem aumentado vertiginosamente nos últimos anos, mas um levantamento realizado entre pesquisadores seniores do continente mostra que, na percepção deles, a qualidade dessa produção científica deixa a desejar.

Para a maior parte dos 55 pesquisadores consultados, não houve melhora de qualidade das teses e dos doutorandos em relação há dez anos. Eles avaliam mal as capacidades dos jovens doutores para escrever artigos e consideram que há pressão por quantidade de publicação e não por qualidade. A pesquisa também detectou insatisfação com as políticas nacionais de pós-graduação e com o tamanho do mercado de trabalho para doutores.

O estudo foi publicado na revista canadense Comparative Biochemistry and Physiology, no quinto número de uma série de especiais dedicados ao trabalho de pesquisadores latino-americanos. A série, intitulada A face da bioquímica e fisiologia comparativa na América Latina - CBP-Latam, teve o objetivo de veicular mais de 120 artigos de cientistas latino-americanos no cenário internacional e discutir o processo de produção científica no continente.

O principal idealizador da série, Marcelo Hermes-Lima, professor do Departamento de Biologia Celular da Universidade de Brasília (UnB), é um dos autores do artigo. Participaram também Michelangelo Trigueiro, do Departamento de Sociologia da UnB, Cássia Polcheira, da Escola Superior de Ciências da Saúde, de Brasília, e René Belboni, da Unidade de Biotecnologia da Universidade de Ribeirão Preto, em São Paulo.

De acordo com Hermes-Lima, o trabalho se baseou em um questionário, elaborado por Trigueiro, com base na escala Lickert, amplamente usada em psicologia. Diante de uma série de afirmativas, os pesquisadores deviam marcar 1 em caso de discordância total e 6 em caso de concordância total. Foram consideradas discordantes as respostas de 1 a 3 e concordantes as respostas de 4 a 6

“Os questionários foram enviados a mais de 240 pesquisadores seniores brasileiros e estrangeiros da área de biologia e bioquímica comparada. O objetivo era saber como eles viam as políticas de ciência e pós-graduação no continente. O questionário também foi respondido por seis cientistas classificados como ‘mestres’, pelo notório reconhecimento em suas áreas” , disse Hermes-Lima à Agência FAPESP.

Segundo o professor, houve pouca divergência entre as respostas de pesquisadores brasileiros e estrangeiros e “mestres”. “A amostra não é estatisticamente válida, mas essa convergência mostra que o levantamento reflete uma visão geral dos pesquisadores da área”, declarou.

O resultado mais veemente se referiu à insuficiência do mercado de trabalho para doutores, segundo Hermes-Lima. A afirmativa “o mercado profissional pós-doutoral na minha área, no meu país, é atualmente excelente” mereceu a discordância de 85% dos entrevistados.

“O número de doutores no continente cresce a uma taxa de 10% ao ano. O levantamento indica que não há lugar para tantos doutores. A economia do país não cresce nesse ritmo, portanto não há sustentabilidade para um crescimento a uma taxa tão grande”, comentou Hermes-Lima.

Para Hermes-Lima, os resultados mais preocupantes se referem à qualidade da pesquisa. Cerca de 65% dos entrevistados discordaram de que a qualidade da produção científica – e não a quantidade – é o principal foco da pressão por publicações.

“Uma das afirmativas dizia que as teses defendidas nos últimos três anos na área do pesquisador consultado eram melhores do que as de dez anos atrás. Quase 60% discordaram veementemente, o que nos permite concluir que houve efetiva perda de qualidade”, disse.

A percepção sobre a capacidade para escrever artigos é ainda pior, de acordo com o estudo. Quase 70% dos consultados discordaram da afirmação “os pesquisadores que concluíram o doutorado na minha área, nos últimos três anos, são capazes de escrever papers de excelente qualidade, sobre questões científicas relevantes”.

“O mais grave é que esses resultados ainda foram distorcidos pelas notas mais baixas dos brasileiros, que corresponderam a três quartos dos que responderam. Podemos estar formando uma geração de doutores que são cientificamente analfabetos”, alertou.

A percepção relativa à infra-estrutura de pesquisa e ao currículo dos cursos de pós-graduação foi mais positiva, de acordo com o estudo. “Os brasileiros estão razoavelmente satisfeitos com a infra-estrutura que os outros latino-americanos. No total, mais de 52% dos pesquisadores aprovam as condições de trabalho em relação a isso. O currículo foi considerado coerente com os contextos modernos de pesquisa por 65% dos participantes”, declarou.

Mais de 77% dos entrevistados demonstraram falta de satisfação com as políticas nacionais para ciência e pós-graduação. A afirmativa “estou plenamente satisfeito com as políticas federais de avaliação e regulação dos programas de pós-graduação no meu país” teve 2 como nota mais freqüente, em uma escala de 1 a 6.

O artigo Perceptions of Latin American scientists about science and post-graduate education, de Marcelo Hermes-Lima e outros, pode ser lido em http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/18721892.

Fonte: Agência Fapesp, 10/11/2008.

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